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05/02/2021

Alicerce da Negritude

Texto: Jacqueline Moreno

O abate do gado no matadouro dos seus tios João de Deus, Raimundo e Flaviano da Apresentação em Águas Claras, estava marcado para às 4h da tarde. Esse era um fúnebre evento paradoxalmente esperado por adultos e crianças como uma espécie de farra. Maria Alice que costumava passar seus veraneios com os parentes, se dirigia ao local intimamente torcendo para que o boi se rebelasse do seu trágico destino, quebrasse o cerco e ganhasse o mundo da mata atlântica do lugar. A liberdade e a fuga da condição do sacrifício imposto pela decisão humana eram as motivações da menina ao assistir aquela cena insólita e ao mesmo tempo, surpreendente. E quando a fuga e não a farra acontecia, ela não só vibrava como também aprendia vitais lições de rebeldia e da inadiável luta pela vida que sempre deve estar acima de tudo e de todos.

A resiliência e a transgressão do boi fujão continuam acompanhando os passos de Maria Alice na sua trajetória. Os seus olhos castanhos cor de mel revelam o contentamento e um grande inconformismo desde que nasceu no dia 4 de março de 1963 em Niterói, Rio de Janeiro. Gêmea bivitelina, lembra da mãe dizendo que ela sempre reclamava por atenção, ainda mais por conta do irmão Manoel Américo ter nascido com problemas de saúde e o tempo e cuidado, devotados ao mais frágil.

A menina foi crescendo literalmente aprendendo a se virar e a andar com as suas próprias pernas. A lembrança do bairro de Águas Claras, denominado assim pelas suas águas cristalinas onde costumava nadar, brincar e colher cajás nos seus veraneios em Cajazeiras, continua sendo o motivo do retorno às origens das suas raízes africanas. O seu cabelo não nega a mais elegante irreverência e valentia. Quando adolescente, a filha de dona Tindu, proprietária do salão de beleza onde a moda era “alisar” as madeixas, resolveu assumir a sua negritude crespa. A vizinhança estranhou, o pai ralhou, a mãe tentou dissuadi-la, mas não teve jeito. Alice inovou, mas não teve sucesso na conquista de novas seguidoras, para o alívio da mãe que manteve fiel a sua clientela.

Outro cerco quebrado foi quando Alice convenceu os pais evangélicos, principalmente Sr. Manoel a participar dos famosos carurus de Cosme e Damião que aconteciam nos meses de setembro nas casas de santo e de famílias de tantos outros credos. Os pontos de convencimento que ela usava para ter sucesso no tal intento? Primeiro, ser gêmea igual aos santos e segundo, exercitar a política da boa vizinhança. Como negar o convite da Tia e Yalorixá Boboca por exemplo? O irmão tinha que marcar presença nos carurus, querendo ou não. Eram os convidados de honra por sinal. A força da palavra sempre de mãos dadas com o forte poder da sua argumentação.

San Martin, Curuzu, Baixa do Fiscal, Pelourinho, Piatã, Brotas, Pituba foram alguns dos bairros que Maria Alice conviveu e viu nascer a maioria dos blocos afros e afoxés de Salvador, chegando a ser candidata a Deusa do Ébano na senzala do Barro Preto. Uma jovem multifacetada em busca da visão de toda a floresta, assim como dos seus vales e abismos. Por que uns são mais iguais do que os outros? Com o inconformismo sempre presente nos seus questionamentos, decidiu seguir a caminho do Direito e quem sabe encontrar alguma resposta. E quanto mais se aprofundava, mais inquiridora e indignada ficava. O racismo estrutural sistêmico, encrustado na nação fruto de séculos de escravização que até hoje tem amargos efeitos colaterais seja pela invisibilidade, violência, seja pela gritante injustiça social, continuam sendo objeto de estudo e meios de reparação.

Já formada pela Universidade Católica de Salvador, assumiu a direção jurídica do bloco Afro Olodum e fez até parte do coral na gravação do primeiro LP (Long Play) da banda. Atuou ativamente na OAB Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia, na área de Direitos Afrodescendentes e Comissão de Proteção e Cidadania. Sua atuação sem fronteiras a levou para a Universidade da Harvard nos Estados Unidos para falar do sonho realizado coletivamente e que é, cada vez mais, o grande propósito do seu resgate ancestral e alicerce da negritude: A Pedra do Xangô, formação rochosa com mais de dois bilhões de anos localizada nas cercanias de Cajazeiras foi e sempre será o lugar sagrado da sua meninice e também da sua maturidade. Com os pés descalços da humildade, Maria Alice pisou no solo sagrado da mata, contemplando a imensidão do monumento e o transformou em tema da sua dissertação de mestrado e tese de doutorado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. O mundo acadêmico nacional e internacional consagrou seu objeto de pesquisa que muito tem contribuído para os acertados passos da consciência com ciência.

O resultado? A criação da Área de Proteção Ambiental (APA Municipal da Avenida Assis Valente) e do primeiro Parque em Rede do município do Salvador (Parque em Rede Pedra de Xangô), permitiu o tombamento da Pedra de Xangô na categoria de patrimônio cultural da cidade de Salvador. O sítio é reconhecido pelo Serviço Geológico do Brasil por conta da sua relevância nacional, elevado teor cultural, turístico e científico O povo negro, comunidades de terreiros e movimentos sociais abriram o caminho para o reconhecimento milenar do lugar. O apoio da Prefeitura Municipal de Salvador, do Ministério Público Estadual, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), além da companhia independente da Polícia Militar era no mínimo, esperado.

O lançamento do livro “Pedra de Xangô: um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador” lançado 18 de setembro de 2019 e a produção de dois livros na categoria Infanto-juvenil sobre a Pedra de Xangô são alguns dos seu grandes feitos. A criação da plataforma digital “Pedra de Xangô: Forças da Natureza” e atuação diária no Instagram do perfil @pedra.de.xango com mais de dez mil seguidores refletem o seu vibrante ativismo. É também autora da música” Pedra de Xangô é enredo, é rede” em parceria com Silvio Almeida e autora do projeto do filme sobre a Pedra de Xangô “Um grito que entrou nos meus sonhos” em parceria com a roteirista Ana Santos. Alcançou também o 3º lugar no VI Prêmio República de Valorização do Ministério Público Federal na categoria advocacia.

Maria Alice Pereira da Silva é o alicerce da negritude. Seus olhos brilhantes revelam a Pedra de Xangô como o acerto de contas não só com a sua ancestralidade, mas também com a igualdade de condição, apreciação das religiões afrodescendentes, liberdade e respeito à diversidade. O boi fujão lá do matadouro do seu tio é o símbolo do legado do protagonismo que a menina, adolescente e mulher tece no seu destino jamais imposto, mas sim construído com redes e conexões do passado, presente e futuro, amalgamadas com eternas e ancestrais possibilidades.

Seus pais de abençoada memória sabem do poder da Maria Alice de cabelos rebeldes e libertos envoltos em coloridos turbantes, de alcançar o topo da Pedra de Xangô e perceber o quanto de desafios tem pela frente e o quanto de benefícios tem a espalhar com o seu conhecimento sem jamais perder de vista, o compasso dos aprendizados e a sabedoria da tempo que a obriga religiosamente, a superar os seus próprios limites.