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Pedra de Xangô: Um lugar sagrado afro-brasileiro na cidade de Salvador

PREFÁCIO I

Fábio Macedo Velame

No meio do caminho tinha uma pedra,
Tinha uma pedra no meio do caminho…
Carlos Drummond de Andrade

O rochedo está lá, rude, ereto, firme, uma pedra de grandes proporções, dura, uma pedra, nada mais que uma pedra. Então, quais são os caminhos que nos levam a ver essa pedra enquanto arquitetura?

Já que se trata de caminhos, temos que convidar Exu a nos orientar, ou nos desorientar, ardiloso que é, entre vários caminhos, que sempre se cruzam. Exu esperto, sabendo que os caminhos são longos, tortuosos, perigosos deixa essa tarefa para Maria Alice, que nos desvela o fato de que a pedra teve força suficiente para mudar o curso da construção de uma via arterial, que cruza o miolo da cidade do Salvador. A pedra teve ímpeto para mudar o rumo da Avenida Assis Valente, edificada pelo poder estadual. A pedra convocou até entidades do Orum para convencer os governantes do estado da Bahia, a mudar o rumo da estrada de asfalto e concreto, mas por enquanto ela é, ainda, uma pedra.

Maria Alice, ouvindo os conselhos de Exu, nos convida a buscar essa resposta em caminhos distantes, na África. Nos levar ao Olumo Rock (A pedra Grande Abeokuta/Nigéria), que servia de esconderijo, de abrigo e pilão, nas épocas de guerra, tornando-se morada do povo Egba, tornando-se o Orixá protetor da cidade. Leva-nos em seguida para Angola, e nos apresenta as majestosas Pedra de Pungo Andongo, que era fortaleza do povo Bantu nas lutas contra as invasões portuguesas, e do tráfico de escravos. No Benim, em Uidá e Abomey, entre o povo jeje, nos mostra que o deus do trovão, o vodum Hevioso, habita nas pedras, ‘’que a força do trovão está contida nas pedras’’. Em seguida nos leva a Mali, e Burkima Faso, em que cada casa quando uma criança nasce, uma pedra é colocada no canteiro da família para receber a água da chuva para proteção da criança.

Exu convoca Maria Alice a voltar de suas andanças da Mãe África para novas andanças pelos caminhos da Bahia. Nos apresenta a Pedra de Ogum em São Francisco do Conde, relatada por Nina Rodrigues, a Pedra de Oxumaré em Salvador, destacada por Bastide, próxima ao mar onde as crianças eram apresentadas a divindade para uma vida de bonança, a pedra de Obaluaiê no Parque de São Bartolomeu que cuidava dos desvalidos da cidade, trazida por Serpa, a Pedra da Baleia, no meio do Rio Paraguaçu, nos seios de Cachoeira e São Félix, que é Iemanjá Ogunté que viera da África, acompanhando os navios negreiros e se transformou numa pedra para cuidar dos seus filhos escravizados nos engenhos de açúcar do recôncavo, assim como as Pedras do Cavalo e da Rachada em Cachoeira, morada dos Caboclos e dos Tupinambás, e na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, no bairro da Saúde, ponto de desembarque de negros escravizados.

Após tantas andanças, Exu lembra que temos de tomar o caminho de volta a Pedra da Avenida Assis Valente, no coração do Bairro de Cajazeira. Temos que retornar de onde partimos, e nos deparamos em frente a pedra, ela está lá, imponente, a pedra. Maria Alice nos apresenta a pedra com muitos nomes, alcunhas dadas pelos moradores de Cajazeiras: Pedra do Buraco da Onça do Quilombo do Urubu (Orobu), na região de Pirajá, Pedra do Buraco do Tatu, do antigo Quilombo do Buraco do Tatu na região de Ipitanga/Itapuã, pedras rotas de fugas e moradas de índios tupinambás e negros escravizados no imaginário da população local; também conhecida como Pedra do Ramalho, em virtude do ato heroico do Sr. Ramalho de Souza Barreto, que se amarrou na pedra para evitar a sua explosão. Para o povo-de-santo de Cajazeiras Pedra dos Cablocos, Pedra de Nzazi, Pedra de Sogbo, Pedra de Xangô.

A pedra é uma ou várias?
São tantos nomes quanto os caminhos que levam a ela.

Mas o nome mais presente na comunidade de Cajazeiras e do povo-de-santo de Salvador é – Pedra de Xangô -, o senhor das pedras de raio, jacutá (o jogador das pedras), Odum Ará, o Rei de Oió, senhor do trovão, da justiça, do fogo, do Oxê, e da vida, Kawô-Kabiyèsílé. Na pedra, Xangô têm sua morada.

Essa morada, a Pedra, através dos rituais, da festa sacralizada, das labaredas das fogueiras e amalás irradiam-se, conectam-se em rede, se espalham pelos terreiros de candomblé de Cajazeiras, compondo suas arquiteturas. São muitos os caminhos e temporalidades que levam Xangô a adentrar o recinto dos barracões dos terreiros em suas festas: a fogueira de Xangô no Tumbi Odé Oji; a fogueira de Xangô no Toke Ji Lodem, o amalá de Xangô no Obá Babá Sére, a festa de Xangô no Odé Oxalufã, a fogueira na festa de Nzazi no Mutalombo, e a caminhada da Pedra de Xangô organizada pelo Tomim Ayo. Idas e vindas do povo-de-santo à pedra de Xangô.
Em sua imponência, a Pedra de Xangô catalisa o movimento do povo de Cajazeiras em prol da criação da APA Municipal Vale Assis Valente, assim como a do Parque em Rede Pedra de Xangô, algo inusitado na cidade, na contramão de um plano diretor – PDDU segregacionista e racista em curso, cuja presença se firmou no respectivo documento a base de luta, mobilização, pressão do povo-de-santo, entrando no apagar das luzes, no final do processo.

A Pedra de Xangô convoca, ainda, o seu povo para a mobilização em busca do Tombamento Municipal pela Fundação Gregório de Matos, que é concedida pelo Conselho Municipal de Cultura. Apesar de tantas batalhas e conquistas, Xangô orgulhoso e glamoroso, sempre quer mais, e traz da África o seu descendente direto, para testemunho de suas vitórias, o Alafin de Oyó Adeymi III para que possa reverenciá-lo, e para que com o seu axé dar-lhe sua benção, filho que luta e roga a pedra – o seu ancestral – pela preservação da cidade de Oió, pede a Pedra de Xangô que lhe ajude, em sua causa, na luta pelo reconhecimento de Oió como Patrimônio Mundial pela UNESCO, como forma de sobrevivência ao sectarismo e radicalismo religioso na Nigéria. Os caminhos percorridos por Maria Alice pela África, Salvador, Recôncavo, Rio de Janeiro, Cajazeiras, caminhos tortuosos, longos, levam à pedra de Xangô. Os rituais do povo-de-santo, as festas a Xangô, edificam o lugar de sua morada, criam essa Arquitetura de Pedra.

Arquitetura sem paredes, portas, janelas, telhados, sem fora e dentro, mas o lugar do abrigo de histórias de índios fugidos, morada de lendas de lutas e resistência de negros quilombolas, cabana de caboclos, e habitar de Orixás, Vodum e Inquices, a casa de Xangô – reverenciada pelo Alafim de Oió -, centro de uma Apa Municipal, elemento geratriz de um Parque Urbano, Monumento Tombado pela Prefeitura dessa Cidade tece a rede de terreiros de Candomblé de Cajazeiras.

Um lugar sagrado afro-brasileiro compartilhado pelo conjunto de terreiros do miolo da cidade, e, principalmente, que compõe a espacialidade e a arquitetura dos terreiros de Cajazeiras, tornando-se uma coisa só, onde a arquitetura dos terreiros e a pedra de Xangô, tornam-se um uno indivisível, inseparável, caminhos entrelaçados em encruzilhadas diversas. Uma única Arquitetura.

A ’Pedra de Xangô: Um Lugar do Sagrado nos provoca a perceber a arquitetura sempre com outros olhos, nos desafia a vivenciar e experimentar o lugar edificando arquiteturas até nos tornarmos divinos, a pensar que uma mera Pedra, nada mais que uma Pedra no meio do caminho, pode ser Arquitetura.