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snsbrasil: “No meio do caminho tinha uma pedra”: resistência e proteção de um lugar sagrado afrobrasileiro em Salvador/BA

No coração de Salvador, na Bahia, existe uma formação rochosa peculiar revestida de significados especiais. Uma pedra imponente, de aproximadamente 8 metros de altura e 30 de diâmetro, considerada um marco identitário, morada do sagrado e lugar de reverência de diversos grupos de matriz afrobrasileira – a Pedra de Xangô.

Um lugar de muitos nomes e histórias, conhecido também como Pedra de Nzazi, de Sogbo, dos Caboclos, Buraco do Tatu, da Onça, do Quilombo do Orubu e do Ramalho – esse último uma homenagem a um senhor que empreendeu o ato heroico de se amarrar à rocha para evitar que ela fosse explodida, em 2005 [1].

Formada por dois grandes blocos de pedra que se interligam em um pequeno túnel, vista de cima a formação lembra uma coroa cheia de pontas e, de frente, duas mãos unidas em prece.

Parte da história dessa formação geológica de mais de 2 bilhões de anos vem da África, percorrendo trajetos tortuosos que entrelaçam o destino de índios Tupinambás, negros africanos e colonizadores europeus com orixás, voduns, inquices, caboclos e encantados – o grande panteão de divindades de tradições de matriz africana que se encontraram e firmaram uma nova identidade no território brasileiro.

Esse sítio sagrado que leva o nome do orixá da justiça, Xangô, tem endereço certo: a Avenida Assis Valente, no Bairro da Cajazeiras em Salvador – a primeira capital do Brasil e a cidade mais negra do mundo fora do continente africano.

Para alguns, representa apenas uma pedra no meio do caminho, um entrave para a expansão da malha viária e de projetos imobiliários. Para muitos outros, no entanto, conforma um lugar de cheio de histórias, de memórias de lutas e resistências, de laços de afeto e pertencimento.

No longo período de escravidão que caracterizou as origens do que chamamos Brasil, a Pedra de Xangô fez parte de uma rota de fuga de negros escravizados nas fazendas dos colonizadores.
Encravada em meio a um rio (que secou quando sua nascente foi aterrada), separava uma parte de águas rasas de outra mais funda, e conseguir atravessá-la representava um passo para a liberdade – algo demarcado não apenas no território físico, mas também no plano espiritual.

Foi palco de eventos importantes da pouco considerada e, em muitos casos, renegada, diáspora negra no nosso país, que está no cerne da conformação de uma sociedade onde os referenciais de raça ainda se impõem como marcadores de desigualdades profundas.

Um processo que não findou com a pretensa “abolição da escravatura” de 1888, que relegou um grande contingente da população da época a uma subcidadania, porque não veio acompanhado de mudanças sociais e econômicas que permitissem a sua integração na sociedade [2].

Nos mais de 350 anos de regime escravocrata no Brasil, cerca de 5 milhões de pessoas foram forçadamente arrancadas do continente africano e embarcadas em “navios prisões” para serem despejadas em terras longínquas e desconhecidas, onde teriam que viver em cativeiro.

Foram submetidas a um regime cruel e desumano, que negou não apenas seus nomes, origens, laços familiares e sociais, mas também sua essência como seres humanos.
Impedidos de exercer a sua cultura e viver de acordo com os seus valores e crenças, as diferentes etnias que aportaram no Brasil se misturaram e se recriaram, concebendo diversas formas de resistência, das quais o sincretismo religioso é uma delas.

As divindades cultuadas pelas tradições de matriz afrobrasileira personificam elementos da natureza e seus cultos litúrgicos são marcados por uma intrínseca relação com as matas, as águas, as árvores e as folhas sagradas, indispensáveis para suas práticas religiosas.
O axé – força vital invisível e mágica que anima todas as coisas – é encontrado apenas no contato direto com a natureza. Daí a expressão “não há Orixá sem natureza”.